Em
entrevista exclusiva ao Café História, Manolo Florentino,
especialista em escravidão no Brasil, fala sobre a complexidade e a
riqueza de interpretações que o tema oferece ao historiador
CAFÉ
HISTÓRIA: Professor, o senhor cursou a graduação, o mestrado e o
doutorado em um momento em que boa parte da intelectualidade, dos
políticos e das pessoas em geral buscava repensar a experiência
histórica brasileira (1977-1991). Escolher a escravidão como tema
de especialização tem a ver com esse momento?
MANOLO
FLORENTINO:
Escolher graduar-me em História, sim, foi uma opção que certamente
guardou alguma relação com a conjuntura política brasileira dos
anos de chumbo. Naquela época, mais do que hoje, muitos dos jovens
que elegiam estudar História ou outras ciências sociais faziam-no
com a ingênua pretensão de adquirir instrumentos para melhor
compreender o mundo – em particular o nosso país – e atuar. Eram
tempos de maior engajamento, de maior “politização”, com enorme
peso acadêmico das diversas vertentes do marxismo. Estava-se contra
ou a favor e pronto, não precisava justificar. O ambiente era tão
polarizado que, certa vez, reagindo de modo evidentemente pueril às
noções de representação social dos então novos pós-modernistas,
um de nossos mais famosos marxistas foi visto nos corredores de sua
universidade dando socos na parede a gritar – “o real existe!, o
real existe!”.
Mas
se estudar história de algum modo resultou do clima cultural e
político da época, eleger o escravismo como campo de especialização
foi algo absolutamente fortuito. Me explico. No início dos anos 80
tive a chance de fazer mestrado no Colégio do México (Colmex), uma
instituição de grande prestígio no âmbito acadêmico
latino-americano. Recém-graduado, eu andava doido para sair do
Brasil, não importando muito para onde nem para estudar o quê. Por
então a Unesco buscava criar uma pós-graduação em Estudos
Africanos em algum país da América Latina e o lugar óbvio deveria
ser o Brasil. Creio que questões políticas levaram o projeto para o
Colégio do México, e eu fui junto. Comecei a estudar a história
social do tráfico atlântico de escravos de um ponto de vista
africano, suas consequências econômicas, sociais etc. Anos depois,
ao regressar ao Brasil, me dei conta de que a única maneira de
utilizar o conhecimento acumulado em África era embrenhar-me pela
escravidão brasileira. Em suma, adentrei a escravidão pela porta da
África, uma África distante da cálida Mãe Preta que os mitos de
origem insistiam em veicular, da qual os anos de estudo no exterior
me ajudaram a esconjurar.
CAFÉ
HISTÓRIA: Por muitos anos, o escravo apareceu em trabalhos de
história apenas como uma peça no sistema colonial, alguém que se
sujeitava a uma força muito maior que ele. Hoje, no entanto, sabemos
que a realidade era bem diferente. O escravo fazia parte de uma rede
bastante ampla, onde havia algum espaço para negociações. Mas o
que exatamente isso quer dizer? A escravidão deve ser compreendida
para além da violência e da coerção?
MANOLO
FLORENTINO:
Creio que a escravidão nos espanta porque atenta contra uma
conquista muito recente da humanidade: os direitos do indivíduo.
Talvez por isto uma parte de nossa historiografia opere em um
registro abolicionista, como se ainda fosse necessário inventariar
os horrores da escravidão para denunciá-los. Com isso se perde
aquilo que, em minha opinião, representa um de seus aspectos mais
intrigantes, que é o fato do escravismo se constituir uma ordem
cultural extremamente estável e rica. Se lermos com atenção a
Gilberto Freyre, observaremos que ser este um dos sentidos de sua
observação segundo a qual a África civilizou o Brasil.
É
claro que para a estabilidade do cativeiro colaboraram a violência e
a coerção. Entretanto, a escravidão não era apenas uma relação
de trabalho, mas também e principalmente uma relação de poder.
Isso significa que sua reprodução se sustentava em grande medida na
esfera política. Daí parecer-me tão importante aprofundar o estudo
de instituições como a família escrava (um fator de ordem
antropológica) e a incessante busca por parte dos escravos em obter
algum controle sobre seu tempo de trabalho. Sobretudo em países como
o Brasil, estratégias que levavam à formação de famílias e à
adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a acumulação
de pecúlio e a obtenção da alforria. Aliás, observe-se que não
temos ainda uma noção mais clara do peso demográfico das
manumissões em nossa história, razão pela qual não sabemos se a
população escravizada e liberta conhecia ou não índices positivos
de reprodução natural, como ocorria em algumas áreas do sul dos
Estados Unidos e em Barbados. Parece que isto também acontecia em
Minas Gerais e no Espírito Santo. De todo modo, quanto mais
descobrirmos regiões onde a população escrava e liberta obtinha
saldos positivos de reprodução natural, mais nos afastaremos da
demografia plantacionista devoradora de homens inventada por Joaquim
Nabuco.
CAFÉ
HISTÓRIA: A mobilidade social parece ser um dos temas mais
interessantes e desafiadores para os historiadores que se debruçam
sobre ao tema da escravidão no Brasil. A miscigenação foi a
principal estratégia de mobilidade ou podemos citar outras?
MANOLO
FLORENTINO:
Eu diria que a miscigenação racial, um dos traços característicos
do Brasil escravista, somente pode ser decifrada por meio da
mobilidade social. Sabemos terem sido altas as taxas anuais de
alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo predomínio de
manumissões de mulheres escravizadas. Semelhante perfil pode ter
várias razões, mas para mim uma das principais era a clareza por
parte dos escravos de que os filhos herdavam o estatuto jurídico das
mães. Ora, uma vez na civitas, com quem se encontrava essa imensa
quantidade de mulheres que ascendiam socialmente por meio das
alforrias? Com seus maridos escravizados, que ajudavam a libertar,
com alforriados com os quais se casavam, e com homens brancos pobres
provenientes de norte de Portugal e das ilhas atlânticas, cujo
número superava o de mulheres portuguesas em uma proporção que não
raro alcançava 9 por 1. O que nossos historiadores demógrafos têm
demonstrado é que se tratava de homens desvalidos cuja ilusão de
enriquecer (“fazer o Brasil”) e regressar a Portugal se esvaía
em poucos anos. Acabavam, pois, por se estabelecer definitivamente na
colônia e exercitavam um critério de escolha matrimonial que dista
um pouco do que Gilberto Freyre chamava de “plasticidade” sexual
do homem lusitano: primeiro buscavam casar com as poucas portuguesas
existentes, depois com as mulheres brancas nascidas na colônia;
esgotados estes mercados matrimoniais, buscavam as mestiças e
negras, inclusive as mulheres forras. Logo, na base de nossa
miscigenação estaria a pobreza pura e simples, que promovia o
encontro entre as cativas que alcançavam a civitas e os homens
pobres de origem lusitana. A miséria partejou o nosso famoso
“pardo”.
CAFÉ
HISTÓRIA: O livro “O Arcaísmo como Projeto”, escrito pelo
senhor e pelo professor João Fragoso (UFRJ), tornou-se uma obra de
referência na historiografia brasileira. Uma de suas maiores
contribuições foi compreender a economia colonial brasileira a
partir de sua própria elite, a partir de sua lógica e de suas
dinâmicas. Como a relação escravo-senhor se inscreve nesta
perspectiva historiográfica?
MANOLO
FLORENTINO:
“O Arcaísmo como Projeto” ainda hoje me surpreende,
especialmente por sua vitalidade teórica. Um dos problemas que na
época de seu lançamento eu e Fragoso tentávamos compreender era a
imensa capacidade de reprodução da economia colonial, sobretudo em
fases B (de retração) do mercado internacional. A escravidão
aparecia então como uma das variáveis centrais, na medida em que,
por reproduzir-se por meio do tráfico atlântico, permitia acesso a
trabalho barato. O cerne da questão radica na separação promovida
pela produção social do escravo na África entre o valor do cativo
enquanto ser de cultura e seu preço de mercado, baixo pois em geral
tratava-se de um prisioneiro de guerra. O baixo preço de mercado do
escravo se transmitia em cadeia através do Atlântico e chegava às
fazendas e cidades da América portuguesa. Combinado ao ínfimo valor
social da terra e dos alimentos, o reduzido custo social do escravo
representava uma variável fundamental para o contínuo crescimento
da economia colonial, independentemente das fases de retração do
mercado internacional.
CAFÉ
HISTÓRIA: Como foi a repercussão do lançamento deste livro no
âmbito acadêmico, sobretudo por parte dos historiadores que tiveram
suas teses contrariadas?
MANOLO
FLORENTINO:
Visávamos contrapor um modelo consistente à teoria da dependência,
dominante na historiografia brasileira desde os escritos de Caio
Prado Júnior. A julgar pela recepção do público, não nos saímos
muito mal, e “O Arcaísmo como Projeto” é até hoje estudado em
nossas graduações e pós-graduações em história. Sei que gerou
algumas reações raivosas no plano estritamente paroquial, mas em
geral foi muito bem recebido entre os especialistas em história
econômica.
CAFÉ
HISTÓRIA: “O Arcaísmo como Projeto” é um trabalho de fôlego
produzido em dupla. O trabalho de equipe, entretanto, não tem sido
visto com tanta frequência entre nós historiadores. Vemos muitos
livros organizados por dois ou mais pesquisadores, mas não são
exatamente a mesma coisa. Na sua opinião, escrever com outras
pessoas é mais difícil? Como se deu essa dinâmica com o professor
João Fragoso?
MANOLO
FLORENTINO:
Duas cabeças pensam melhor que uma, desde que haja sintonia. De
minha parte, sempre gostei de trabalhar em equipe, pois as discussões
são bem mais ricas. Reconheço entretanto não ser esta uma tradição
intelectual brasileira, embora seja algo bem comum em países como os
Estados Unidos e a Inglaterra, por exemplo.
CAFÉ
HISTÓRIA: O senhor tem observado alguma tendência em trabalhos no
campo da escravidão em trabalhos de pós-graduação? Talvez novos
objetos ou abordagens?
MANOLO
FLORENTINO: Se
considerarmos, como já disse, que o caminho mais rico para se
compreender a escravidão brasileira é encará-la como uma ordem
cultural caracterizada por um enorme grau de estabilidade, é óbvio
que a principal tarefa dos especialistas é romper com a polarização
entre o cativeiro e a liberdade. Entre ambos os polos havia uma
imensa gama de situações e combinações sociais possíveis. Por
exemplo, estudando o caso do Paraná, a professora Cacilda Machado
demonstrou que membros de uma linhagem de escravos podiam abandonar o
cativeiro e duas ou três gerações depois seus descendentes
regressavam à escravidão pela via do casamento com escravas. Eis
uma perspectiva dinâmica de pesquisa, cujos resultados mostram
claramente que a pobreza unia e direcionava inúmeros destinos
pessoais. Outra linha de trabalho interessante tem sido desenvolvida
por João José Reis, na Bahia, que busca acompanhar trajetórias de
indivíduos alguma vez submetidos ao cativeiro. Seu livro sobre o
liberto Domingos Sodré é um exemplo dos mais ricos de como a
mobilidade social ascendente ocorria – o africano Domingos Sodré
chegou ao Brasil escravo, conseguiu a alforria e morreu proprietário
e cristão.
CAFÉ
HISTÓRIA: Professor, Nos últimos anos, temos acompanhado um enorme
debate público envolvendo as chamadas “ações afirmativas” no
Brasil. Como o senhor enxerga esse tipo de política? Trata-se de um
modelo importado? Alguns historiadores alertam que esse discurso gera
um tipo de instrumentalização da história, sobretudo do tema da
escravidão. O senhor concorda com essa crítica?
MANOLO
FLORENTINO:
Sem dúvida trata-se de um modelo de política pública importado
mecanicamente, aspecto flagrante quando se compara a história das
relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil, onde os níveis de
mobilidade social ascendente eram infinitamente maiores. Um exemplo
de instrumentalização da história brasileira por parte dos adeptos
das chamadas “ações afirmativas” é a própria noção de
terras remanescentes de quilombos, cuja identificação está longe
de ser fácil. Outro é o fato de que parcela expressiva de nossos
pardos tem sido alocada ao grupo dos “negros”, quando na verdade
derivam da mestiçagem entre brancos e indígenas – um tremendo
etnocídio historiográfico, por certo.
CAFÉ
HISTÓRIA: Em entrevista recente, o professor José Murilo de
Carvalho (UFRJ) sublinhou que os principais trabalhos
historiográficos sobre o Brasil continuam sendo feito a partir de um
ponto de vista típico do “Eixo Rio-São Paulo”. E isso pode ser
um problema. Podemos dizer que isso também ocorre nos trabalhos
sobre escravidão? Se sim, por que isso acontece?
MANOLO
FLORENTINO:
Pode ser que isto ocorra em outros campos da historiografia, mas no
que se refere à escravidão creio que a hegemonia do eixo Rio-São
Paulo deva ser relativizada. Com a crescente disseminação dos
cursos de pós-graduação, temos visto aparecerem excelentes
trabalhos no sul do país, com destaque para o Rio Grande do Sul; no
sudeste, os estudiosos da escravidão mineira e do Espírito Santo
têm produzido teses e dissertações bem originais; o nordeste, em
especial Bahia e Pernambuco, sempre foi um celeiro de boas pesquisas
sobre cativeiro. A novidade dos anos recentes tem sido o Norte e o
Centro Oeste, onde também aparecem trabalhos originais. Mas eu
gostaria de ressaltar uma importante distinção teórica,
estabelecida desde fins da década de 1960 pelo historiador Moses
Finley, que ainda pode ser útil para quem estuda escravidão fora do
eixo Rio-São Paulo e nordeste. De acordo a Finley, uma sociedade
escravista é aquela em que a reprodução sociológica do lugar
social da elite se dá mediante a renda acumulada com o trabalho
escravo. Nos casos em que há escravos na população, mas a
reprodução do lugar social da elite se dá por outros meios,
teríamos apenas uma sociedade possuidora de escravos. Ou
seja: escravista é toda sociedade em que a utilização do trabalho
escravo serve para estabelecer s diferenciação entre os homens
livres.
Trata-se de uma perspectiva interessante, pois a natureza
escravocrata de uma sociedade deixa de ser resultado da quantidade de
cativos existentes ou, mesmo, da importância do setor da economia
que eles ocupam, e passa a derivar de um movimento sociológico.
Desconfio que entre os séculos XVI e XIX vastas áreas da América
portuguesa configuravam regionalmente apenas sociedades possuidoras
de escravos.
CAFÉ
HISTÓRIA: Professor, muito obrigado por conversar com o Café
História. Para finalizar nosso papo, uma curiosidade: o senhor está
se dedicando a quais trabalhos atualmente?
MANOLO
FLORENTINO:
Tenho batalhado para traçar algumas características da comunidade
de islamitas negros que se formou no Rio de Janeiro depois do levante
Malê de 1835 na Bahia. É uma reconstituição difícil porque eles
tendiam a manter certo sigilo sobre a sua identidade religiosa e, em
1904, de acordo a João do Rio, praticamente haviam desaparecido.
Tomara que eu tenha sorte.